As distorções e os conflitos decorrentes do ARE 1.255.885 e da ADC 49 (ICMS sobre transferências)
Em tempos de intenso debate sobre as diversas propostas de reforma tributária e de disputas sobre qual o melhor modelo, embora não se discuta qual o melhor modelo de Estado a ser custeado pela tributação, tem-se que a indefinição e o consequente vazio legislativo ao promover uma rápida resposta vêm sendo preenchido pelas inúmeras decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em ações declaratórias de (in)constitucionalidade e em recursos extraordinários com repercussão geral.
Assim, pragmaticamente, se o legislador não resolve, a Suprema Corte imprime a visão dela sobre o nosso sistema tributário, cabendo aos demais operadores do direito e à sociedade adaptarem-se e incorporarem os custos e os benefícios dessas decisões constitucionais ao sistema tributário e à economia brasileira.
Contudo, não é possível deixar de destacar que nossa Suprema Corte não é composta por profissionais do Direito dedicados ou com experiência na seara tributária ou na economia e, igualmente, que decisões proferidas em casos concretos, ainda que sujeitas à repercussão geral e universalização da tese, costumam não sopesar todos os aspectos jurídicos e econômicos que serão impactados, ou seja, as famosas consequências econômicas não desejadas.
Para evidenciar o quanto apresentado na pequena introdução acima, nada mais vivo do que falar do ICMS. Imposto que, além de extensa regulamentação constitucional e disciplina em legislação complementar, é instituído e normatizado nas 27 unidades federadas com particularidades e especificidades que causam um dos maiores gargalos do contencioso tributário e na aplicabilidade do próprio direito tributário.
Os exemplos são inúmeros, tais como a substituição tributária generalizada, a guerra fiscal, as inesgotáveis obrigações acessórias, as disputas sobre parâmetros para o direito ao crédito e aplicação da não-cumulatividade e as expressivas discussões envolvendo a aplicação retroativa da decretação de inidoneidade, dentre outros.
Na linha das complexidades acima apontadas inerentes a um tributo de competência estadual, mas de caráter nacional, que desafiam e apontam as fragilidades de nosso sistema federado que concentra o poder na União e, ao mesmo tempo, impõe inúmeras obrigações às unidades federadas e aos municípios, tem-se a disputa sobre os conceitos de mercadoria e operação para fins de tributação do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular.
A tese não é nova, de há muito tempo o Superior Tribunal de Justiça já editara a Súmula 166, pela qual não “constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.
Esse posicionamento jurisprudencial, inclusive com acolhimento da Suprema Corte, foi ressaltado pelo min. Dias Toffoli no voto condutor do ARE 1.255.885, no qual o STF reconheceu a não incidência do ICMS na transferência de gado entre fazendas de propriedade do mesmo contribuinte, localizadas em estados distintos.
Contudo, vale destacar que no julgamento houve um voto técnico, com argumentos eminentemente jurídicos sobre os conceitos de operação e de circulação de mercadoria para fins de incidência do ICMS e a definição do fato gerador o qual demanda a transferência de titularidade da mercadoria.
Assim, o voto não adentrou em questões acerca da manutenção ou necessidade de estorno do crédito no estabelecimento de origem ou sobre eventual irregularidade do crédito no estabelecimento de destino em relação àqueles contribuintes que sujeitaram as operações de transferência interestadual à incidência do ICMS.
Também é necessário notar que no julgamento do ARE 1.255.885 (15 de agosto de 2020), a despeito da fixação da tese – Tema 1099 – de não incidência do ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para ou outro do mesmo contribuinte ainda que localizado em Estado distinto (ausência de transferência de titularidade), não houve a declaração expressa de inconstitucionalidade de qualquer dispositivo da Lei Complementar nº 87/96.
A declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos da LC 87/96 veio a ocorrer no julgamento da ADC 49, no qual o STF “por unanimidade, julgou improcedente o pedido formulado na presente ação, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal nº 87”.
Assim, a partir da ADC 49, restou inconstitucional: (i) a autonomia dos estabelecimentos (art. 11, §3º, II); (ii) a incidência do ICMS sobre a mera transferência/saída de mercadoria (art. 12, I); e (iii) a estipulação de base de cálculo para apuração do ICMS na transferência entre estabelecimento do mesmo titular localizados em Estados distintos (art. 13, §4º).
Desta forma, a despeito de os contribuintes estarem autorizados a não se sujeitarem à incidência do ICMS nas transferências internas e interestaduais desde 15 de agosto de 2020, quando da fixação do Tema 1099, é certo que, a partir da publicação do Acórdão proferido na ADC 49, não somente as legislações estaduais e do distrito federal serão expressamente inconstitucionais, sem suporte na legislação complementar no que diz respeito à incidência do ICMS nas transferências, como também poderão ser reconhecidos como irregulares os créditos tributários aproveitados no destino, em relação às operações anteriores ao julgamento da ADC, por aqueles contribuintes que cumpriram com a legislação complementar e estadual, bem como poderá ser questionável a manutenção do crédito no estabelecimento de origem, tendo em vista a transferência não mais tributada.
Sobre a manutenção do crédito na origem, tem havido a adoção de posição jurisprudencial no sentido de que o princípio da não-cumulatividade deve ser visto de forma ampla, observando-se a operação total ou completa a ser realizada pelo contribuinte.
Assim, o crédito no estabelecimento de origem deveria ser mantido considerando que haverá a incidência tributária no estabelecimento de destino. Essa orientação jurisprudencial deverá ser reforçada, tendo em vista a declaração de inconstitucionalidade do princípio da autonomia do estabelecimento.
Contudo, é inevitável deixar de pensar no ônus que será imputado ao contribuinte para comprovar, ao estado de origem, que houve tributação no Estado de destino – venda ao consumidor –, e que tal operação não foi sujeita a benefício fiscal ou redução de base de cálculo.
Já sobre a possibilidade de glosa do crédito aproveitado pelo estabelecimento de destino em relação às operações realizadas antes da declaração de inconstitucionalidade por aqueles contribuintes que cumpriram com a legislação, poderá ser concretizada pelos estados de destino que terão título legítimo – declaração de inconstitucionalidade – para argumentar que a tributação do ICMS na transferência interestadual era indevida – inconstitucional – e assim não há base legal para a manutenção do crédito. Tal intento poderá ser materializado por pedido amigável de estorno dos créditos ou mediante lavratura de auto de infração.
Em tal situação, caberá ao contribuinte sustentar ter agido de boa-fé, com fundamento em legislação vigente e sem qualquer previsibilidade de declaração de inconstitucionalidade, que o próprio estado previa a incidência do ICMS nas transferências, que embora houvesse jurisprudência no sentido de afastar a incidência do ICMS nas transferências entre mesmo estabelecimento não havia, ao menos até 15 de agosto de 2020, expectativa de repercussão geral e que, ao caso, valeria a aplicação do art. 24 da LINDB e do parágrafo único do art. 100 do CTN em prol da segurança jurídica diante da mudança normativa.
Outro ponto a ser desdobrado do julgamento de inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular é a possibilidade de repetição de indébito do ICMS pago ao estado de origem em razão da transferência entre estabelecimentos, a qual seria plenamente possível, eis que o custo desta operação é arcado pelo titular do estabelecimento.
Diante das futuras disputas e complexidades aqui apontadas, entendemos prudente que, em sede de embargos de declaração na ADC 49, sejam discutidos os efeitos e as consequências da decisão em relação à manutenção ou estorno de crédito, aos poderes a serem atribuídos aos estados e ao Distrito Federal para reverem as operações passadas, bem como o direito à repetição do indébito, o que poderá demandar a modulação dos efeitos em eventuais embargos de declaração, de forma a evitar o alargamento do contencioso tributário e um mínimo de estabilidade entre as relações fisco-contribuinte.